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CORTANDO AS ASAS DOS ANJOS

Santo � o Senhor...



Ele caminhou pela rua... Vinha calmo. N�o era um divagar. Tinha um objetivo, mas era um caminhar aparente abstrato. Seus olhos tinham aspecto cansado. Ele pensava em anjos de olhos azuis... Anjinhos nus perfeitos, de cabelos loiros e olhos azuis, singelos. Seus olhos arderam, sentiu mais e mais essa sensa��o... Queria tocar os anjos, sentir a pele imaculada daqueles seres imposs�veis ao toque. Tocou sua pele... Era uma pele muito parda, uma pele suja. Tocou o pr�prio bra�o, sentiu o odor de suor, uma certa podrid�o que emanava do esp�rito para pele transbordando pelos poros.

Saiu do transe moment�neo, ouviu uma buzina de moto... Um homem, uma mulher, e um anjo.



"Te quero em meus bra�os, anjinho de sublime amor... Te quero em meus bra�os pelo amor do Senhor"



Sentiu uma reciprocidade, num olhar furtivo... O anjo que ali passara de s�bito lhe dera dimens�o de um c�u de profundo azul... Ser� que ele poderia chegar ali? E se batesse �s portas do c�u e lhe corressem a folha corrida de atrocidades?



- Vergonha... Vergonha... Sem vergonha... Louco!



Pensamentos confusos, pensamentos diversos em sua mente, puro conflito que se materializava ali naquele momento num caminhar um pouco mais acelerado. Ser� que ele estava se denunciando? O que havia de mal em pensar em anjinhos? Isso o estava redimindo, ele tinha uma certeza que se corrompia sempre que pensava em si como realmente era... Um neguinho sujo, um presidi�rio, um fugitivo, um est...



"N�o, porra! N�o, eu n�o sou isso!"



Mas era sim, ele sabia disso, imensamente infeliz consigo mesmo. Mesmo que negasse... E se n�o negasse? Se assumiria bem pior do que era realmente. Matava, matava anjos para libertar seus dem�nios. Eram muitos dem�nios... Seu pai, seu irm�o, sua m�e, todos eram dem�nios. Ele era um tipo de dem�nio e quando queria, emanava poder... Um poder violento de olhos vermelhos de rosto transfigurado, sem emo��o. Ele parecia n�o se emocionar, as supostas l�grimas eram gotas de suor, salgadas, rolando da testa, seguindo na dire��o das fossas lacrimas, adentrando nas mucosas dos olhos, ardendo... "Maldito suor, filho da puta"!

Chegou ao cruzamento... Do outro lado estava Deus... Um combate... Sentia seu corpo leve, mas se arrastava... Nenhuma motiva��o sincera passo-a-passo seguia no caminho, nenhuma motiva��o. Tinha que chegar a algum lugar. "Dispensar a mercadoria", vender o esquema que estava em sua m�o... Aquilo tava esquentando muito. Sentiu que n�o estava com pressa agora... Seus olhos cansados, seu corpo cansado... Precisava sentir-se divino, disputar com Deus, macular algum anjo.

Onde estava o anjo que ele tinha visto na avenida h� poucos minutos atr�s? O �nico anjo ali que tinha lhe chamado a aten��o?

Ele havia visto alguns por ali... Correndo, pulando, gritando... Seu estomago remoeu, sentiu-se mal. Havia uma farm�cia ali pertinho, bastava atravessar a avenida. Pegou uma diagonal, n�o chamou a aten��o. Pagou um cigarro no churrasquinho do cruzamento, era um derby... Tirou uma nota de cinco. O dono da banca p�s-se a rir...

"Tem carteira n�o... S� retalho vai querer?"

"Me d� um churrasco s�... Volto j�" Desceu o canteiro central, entrou na farm�cia, contou os passos... Dezesseis passos... Cansa�o... Ainda tinha que andar muito... Conjunto Cear�, Genibau, porra... Era s� um fudido... Ele queria um anjo. Ele queria libertar seus dem�nios.

Pediu um sonrizal, pagou um real, pegou no caixa, sem olhar para o carinha que estava por l�. Sempre que olhava para os caras e as meninas que ficavam ali atr�s, se sentia forte demais, um senhor dominador. Evitou, ele queria chegar em casa... Se algo pudesse lhe tirar de seu objetivo, teria que ser muito mais que um caixa cheio de dinheiro.

O que estava em sua mente, era algo mais singelo. Era um anjo lindo, de olhos verdes, tinha os cabelos cor de ouro, n�o era um anjo despido, mas ele poderia despir... Teve um leve tremor nas m�os suficientemente vis�vel. Disfar�ou... Foi pegar o churrasquinho, pagou... Desceu à cal�ada, o churrasco estava com um gosto estranho, cuspiu o peda�o que havia tirado do espeto. N�o tava com o estomago legal. Jogou no ch�o, limpou a m�o, a boca ele limpou com um peda�o de pano que tinha dentro do bolso. Respirou e viu a casa de Deus. Uma casa de combate, cheio de gente porca. Ele se sentiu um porco. Foi se juntar aos porcos... Adentrou no chiqueiro. Uma dessas mulheres cheias de badulaques da igreja se esbarrou com ele na entrada da Igreja.

"Desculpe"! - Ela disse. Ele n�o se importou, tentou passar pela multid�o e desistiu, ficou na porta da entrada. A missa estava pelo meio. Ouvia o padre falando. O Microfone deixava a voz do padre estranha, mas ele ouvia bem o falat�rio. Um dia quis ser padre. Via os padres como almas gentis, homens s�bios que ele tinha que respeitar. Mas sabia que em si guardava um dem�nio e tinha que libertar... Ali o Dem�nio estava se revoltando. Queria devorar um anjo. Sair de dentro dele.

O padre iniciou um c�ntico bem conhecido. Padre Zezinho... Ele adorava aquela m�sica, mas n�o seu Dem�nio... Cada vez mais protuberante, mais revoltado, mais agressivo... Ainda contido.



"Um grande amigo meu

Que a sua f� perdeu...

No dia de Natal me procurou."



De olhos abertos caminhou pela casa de paredes velhas, por onde a luz mal entrava. Um c�modo, uma cama velha, um fog�o, duas redes. Deitou na cama. A vizinha continuava a cantar... Ela poderia at� mesmo ficar sem cantar, o Padre estava preso no r�dio, quando ele quisesse poderia fazer o troco tocar a musica de novo.

Um homem entrou pela casa... Moreno, magro. Tinha mais for�a, era mais velho. Sentiu as costas ardendo... “Levanta seu fidiputa”! Queria chorar. Calou-se...



“Contou-me a sua vida

T�o cheia de incertezas

Com tanta honestidade

Que me fez chorar”



Aquilo j� tinha acontecido... Repetia-se quando a m�e saia de casa. Sempre... Sempre e sempre. N�o sentia mais dor. Sentia �dio.



“�dio � um dem�nio maldito... E eu o tenho dentro de mim”

(A voz se fez ser ouvida, ecoou pelos seus �rg�os, chegou aos seus miolos... Era bem n�tida em seus ouvidos).



Veio o cheiro de cacha�a acre, azedo...



“E a l�grima teimosa caindo no meu rosto

Lavou meu preconceito de crist�o”.



O peso... Uma estocada. Suas entranhas do�am. Outro peso, outra estocada.

- Cuzinho gostoso o seu, voc� e meu anjinho. Voc� ama o papai”?

- Amo... Muito!

A sanha continua imbat�vel... Outra estocada... Mais r�pida mais profunda... O resto de sol se apagou. Ent�o ele viu.

Um anjo veio em sua dire��o. Estava nu, era de um quadro do col�gio, cabelos loiros, olhos azuis. Veio at� ele.



“Sempre que quiser fugir eu lhe darei minhas asas”!



Inesperadamente, arrancou suas asas e desabou. Veio se arrastando e sangrando, com seu rosto belo e barroco que foi se tornando monstruoso a cada agonizante passo marcado por manchas sanguinolentas. Sua boca se abriu... Havia h�lito de podrid�o profana emanou dali. Sua pele outrora corada, agora era de uma alva doentia e cadav�rica. Em suas m�os as asas pingavam sangue. O anjo quando finalmente parou de se arrastar, tomado de suas r�stias de vigor, cravou as asas nas costas do menino.



“Deus... Como d�i... Por que”?



Irm�os oremos...

Ele Acordou... Mas estava de olhos abertos. Sonhara, tinhas mares de l�grimas em seus olhos. N�o era um sonho, era um pesadelo reincidente.

O mesmo anjo, as asas, o terror... O Banquete de carne, a reden��o atrav�s dos seus malditos dem�nios que eram exorcizados atrav�s dos anjos que ele desejava de forma insana. Ele nunca conseguia aprisionar um anjo. Eles criavam asas. No derradeiro momento, na hora do gozo, suas m�os se tornavam mais agressivas. Sufocantes... Garras de dem�nio...



“Pai Nosso que est�s nos c�u”...

(Ritual)



Algo o ofuscou... N�o era o sonho vivo ali, era o pr�prio anjo, fulgurante de olhos azuis, numa pele de crian�a totalmente humana. Ela passou por ali... Ele a seguiu.

Mas anjos n�o tinham sexo, n�o cheiravam a rosas, n�o tinham batom... O Dem�nio estava ali, nele, desperto, pedia para sair, quase um berro, ecoando em sua mente.

“Me deixa em paz por favor”! Sussurrou... Teve cuidado. Parou no carrinho de pipocas.

“Quanto custa”? – Pagou o pipoqueiro com uma nota de dois reais... Foram dois saquinhos. Anjos gostam de pipocas com manteiga... Eles gostam sim, depois refrigerantes... O Dem�nio sugeriu, era um dem�nio s�bio.



“Santificado seja o Vosso Nome...

Venha V�s ao Vosso “Reino”



A l�ngua dos anjos era eficaz, sorvetes, pipoca, doces, bombons, refrigerantes. Algo mais eficaz seria um sorriso... Estava ficando cada vez mais dif�cil conseguir arrancar as asas dos anjos e devor�-los.



“Lembra do �ltimo?... Que Desgra�a... Eles te pegaram! Voc� n�o conseguiu arrancar aquelas asas sujas”.



- Quer pipoca? – Ela sorriu. Algumas crian�as por ali, brincavam. Ela sorriu.

Seu corpo tremia. Sentia algo acumulando por dentro... Vai ser bom... Pensamentos vinham como um jorro... Ela era todo ansiedade.

- Quero... – Olhos brilhantes cor, azul... Era seu anjo. Ele cuidou de tudo, olhava para os lados.

- Qual sua idade?

- Cinco...

- Tenho uma filha de cinco anos... Quer brincar com ela?

- Quero...

Ela era simp�tica, linda... Arrancaria as suas asas com carinho.

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